Homofobia e antipetismo levam desunião à União do Vegetal

Folha de S. Paulo

Ação na Justiça contra religião da ayahuasca pressupõe 'lavagem cerebral' com chá da UDV

Ilustração de Trey Brasher - Reprodução/Instituto Chacruna

Como revelou o repórter José Marques na Folha o Centro Espírita Beneficente União do Vegetal (UDV), uma igreja da ayahuasca cujo lema é "luz, paz, amor", está em pé de guerra. O conflito escalou na eleição presidencial e já ameaça ressuscitar o mito da "lavagem cerebral" com emprego do chá psicodélico.

Um pedido de ação popular enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) por Alexandre de Oliveira Rodrigues (https:/www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/stf/1738382754/inteiro-teor-1738382755) solicita decisão liminar suspendendo o uso quinzenal do chá em cerimônias da igreja. Rodrigues deixou a UDV há 13 anos.

Na petição de 10 de janeiro, o advogado de Brasília denuncia "possível uso do chá ayahuasca como instrumento de alienação e doutrinação ideológica". Recomenda a suspensão do sacramento para "evitar o uso do chá ayahuasca para formação ideológica de movimentos fanáticos, fundamentalista[s] e contrários ao ordenamento constitucional".

O relator do processo é o ministro Ricardo Lewandowski, que encaminhou o caso para O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Parece pouco provável que o Judiciário acate a proposta de suspender o uso cerimonial da bebida.

"Pedi para proibir em caráter temporário o uso do chá pela UDV para investigar a razão de ter diversos pregadores religiosos apoiando golpe contra a democracia, pois se caracteriza crime incitar golpe contra o regime democrático", disse Rodrigues, quando questionado sobre eventual desproporção entre o proselitismo de alguns dirigentes e a punição abrangendo 22 mil membros da igreja.

"Qual a razão dos pregadores, mesmo cometendo atos contra a democracia, ainda continua[re]m sendo pregadores?" – indaga. "Pessoas que criticaram a permanência dos pregadores [foram] punidas pela religião por faltas espirituais."

Um dos punidos com afastamento foi Agamenon Honório, do Ceará, na UDV há 34 anos. Ele publicou um vídeo apontando incongruência entre o lema da UDV e a rejeição a homossexuais (https:/youtu.be/dWq4oXJHihA) e a defesa de armas por dirigentes, como fez o mestre Raimundo Monteiro em postagens de redes sociais.

Reprodução de tela que acompanha áudio do mestre da UDV Raimundo Monteiro - Reprodução

Em resposta por escrito ao repórter José Marques, a UDV ressalvou ser uma religião apartidária e não ter preferido nem indicado candidato à Presidência. Informa ter afastado integrantes da direção por "excessos", mas não diz quais.

Monteiro prega em sua mensagem que homem, mulher e filhos, a família tradicional, são a matriz que permite a evolução humana. O tom homofóbico fica ainda mais evidente em postagem de sua mulher, Zilda Monteiro de Souza, em que ela narra suposto encontro com travesti em banheiro feminino, a poucas semanas do primeiro turno de 2022.

A homofobia implícita na doutrina da UDV combina bem com a fixação bolsonarista no tema, mas não nasceu com ela. Muito antes da tentativa de criar o partido Aliança pelo Brasil por Luis Felipe Belmonte, mestre da UDV e empresário que defende mineração em terra indígena, a condição de homossexual já impedia a progressão na hierarquia da religião.

Há um vídeo revelador sobre o viés homofóbico da UDV (https:/youtu.be/Xznok0iWuac) em que o psicólogo e neurocientista Daniel Gontijo entrevista Armando Grisi, que foi da UDV. Grisi conta que passou uma década na condição de sócio da igreja, sem poder ascender ao primeiro degrau da organização, o Corpo Instrutivo, por ser casado com outro homem.

Quando se separou do companheiro, acabou convidado para subir de nível. De preferência casando-se com uma mulher. Só homens casados e heterossexuais podem alcançar a condição de mestres, grau máximo da UDV.

A antropóloga brasileira Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna em São Francisco (EUA), não chegou a se associar à UDV, mas frequentou reuniões da igreja por duas décadas quando pesquisava o fenômeno social da ayahuasca no Brasil. Ela conta que sempre se sentiu inferiorizada pelo machismo e modelo heterossexual dominantes na UDV, sem reconhecimento adequado da instituição por sua contribuição intelectual e ativista ao campo.

Labate agora se diz "em êxtase" com a discussão interna na UDV (https:/chacruna-la.org/racha-na-udv-mostra-que-religiao-e-politica-nao-podem-ser- separadas/), que enfim abriu uma brecha para o debate sobre homofobia. Mas ela afirma considerar triste que um ex-sócio tente entrar com um pedido legal de suspensão do chá na UDV.

"Existe uma visão tanto médica quanto de senso comum de que alucinógenos podem causar sugestionabilidade", ela esclarece. O próprio Chacruna tem publicado muita coisa sobre abuso sexual após uso de psicodélicos, inclusive um guia de orientação para prevenir assédio de terapeutas, guias e xamãs (https:/chacruna.net/wp-content/uploads/2019/06/Chacruna-Sexual-Awareness-Guidelines-Portuguese.pdf) contra clientes sob efeito dessas substâncias.

Dizer que a UDV promove "alienação e doutrinação" por meio da ayahuasca, na sua avaliação, equivale a usar as mesmas categorias que o Estado e o senso comum utilizam para combater o que se chama pejorativamente de "seitas". Elas não seriam religiões legítimas, pretexto para criminalizar "alucinógenos", que não poderiam representar vias autênticas de acesso a conhecimento, práticas milenares entre povos originários e em igrejas que ora enfrentam perseguição na Espanha (https:/www1.folha.uol.com.br/blogs/virada-psicodelica/2023/01/um-apelo-contra-a-demonizacao-de-ayahuasqueiros-na-espanha.shtml) e na França, por exemplo.

"Embora eu ache lamentável a postura dos mestres bolsonaristas, também acho lamentável essa via legal de tentativa de resolução de um conflito interno. É a reprodução de uma lógica proibicionista e punitivista."

Segundo a antropóloga, a UDV sempre foi muito legalista, buscando a via institucional, formal, até judicial. "Sempre incorporou o discurso do Estado e flertou com interesses dominantes. Sempre teve um certo complexo de superioridade, de se achar diferente, melhor e com mais direitos que as demais religiões ayahuasqueiras", critica.

"É no mínimo irônico. O feitiço está se voltando contra o feiticeiro."

Previous
Previous

UDV’s Internal Clashes Shows that Religion and Politics Cannot Be Separated

Next
Next

Religião que usa chá de ayahuasca vive crise após mestres cobrarem apoio a Bolsonaro e a golpe